Resenha: A Cor Púrpura, de Alice Walker

a cor purpura

Vencedor do Prêmio Pulitzer em 1983 e inspiração para a obra-prima cinematográfica homônima dirigida por Steven Spielberg, o romance A cor púrpura retrata a dura vida de Celie, uma mulher negra no sul dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. Pobre e praticamente analfabeta, Celie foi abusada, física e psicologicamente, desde a infância. Um universo delicado, no entanto, é construído a partir das cartas que Celie escreve e das experiências de amizade e amor, sobretudo com a inesquecível Shug Avery. Apesar da dramaticidade de seu enredo, A cor púrpura se mostra muito atual e nos faz refletir sobre as relações de amor, ódio e poder, em uma sociedade ainda marcada pelas desigualdades de gêneros, etnias e classes sociais.

Eu abri A Cor Púrpura realmente sem saber o que esperar. Não tinha lido a sinopse, não tinha lido nenhuma resenha; só sabia que era um clássico americano escrito por uma mulher negra, e por isso o peguei para ler. De um começo de leitura sem muitas expectativas, saí com uma leitura que com certeza entrará nos Melhores de 2017.

Entrar totalmente cega nesse livro foi, na maior parte, uma ótima decisão de minha parte; mas algo que tornou o choque do primeiro capítulo ainda maior. O choque veio por dois lados: pelo conteúdo, e pela forma narrativa. A Cor Púrpura é um livro que trata de temas pesados como abuso e estupro de forma bastante crua, e na primeira página do primeiro capítulo isso já se torna claro – talvez claro demais para alguns leitores. Se você tem algum gatilho relacionado a esses temas, portanto, sugiro cuidado.

O maior choque, porém, não foi o tema, mas sim a narrativa. A Cor Púrpura é um livro epistolar, ou seja, é uma história contada por meio de cartas escritas pela protagonista. Celia, porém, nunca completou sua educação formal, e o estilo de escrita espelha isso. A narrativa está cheia de “erros”, e é baseado na linguagem oral, ou seja, Celia escreve “como fala”. Em um primeiro momento, isso torna a história um tanto incompreensível, difícil de ser acompanhada – principalmente se está fazendo a leitura em inglês. Porém, não demora muito para se acostumar com essa narrativa única, e a partir desse ponto ela se torna extremamente rápida e fluida. Esse é um livro que pode facilmente ser lido em um ou dois dias; algo que normalmente não é associado com os clássicos.

O estilo de escrita único também é um dos métodos de caracterização de Celia no livro: como alguém que é desconsiderada por todos como uma mulher “simples”, “sem educação”, e até mesmo “burra”, mas que esconde uma vida interior muito rica. Celia é um dos grande pontos fortes do livro; com um caráter simpático e carismático o suficiente para carregar um livro sobre sua vida, é a protagonista ideal para esse tipo. A Cor Púrpura não tem uma linha narrativa per se; ao invés de ter algum “propósito” ou “objetivo final”, a narrativa é apenas um acompanhamento da vida de Celia. Mas o livro nunca se torna maçante ou lento por conta dessa falta de linha narrativa; pelo contrário, essa é uma leitura extremamente cativante e que prende sua atenção desde a primeira página. E isso se deve em muito pela personagem carismática de Celia, e pela habilidade de Alice Walker em fazer o leitor se preocupar e torcer pela protagonista.

O estilo de narrativa contado por cartas, porém, traz seus problemas, que seria a única crítica que tenho a fazer: o ritmo da narrativa sofre em alguns pontos devido ao formato de cartas não datadas. A Cor Púrpura acompanha décadas e décadas de história, mas é difícil descobrir onde a narrativa avança no tempo; em várias partes do livro eu tive que voltar e reler capítulos porque apenas páginas depois eu conseguia perceber que a história havia mudado de tempo.

Mas essa pequena reclamação é, no final das contas, ignorável em vista de todos os outros pontos positivos da história. E esses pontos não são difíceis de identificar, pois A Cor Púrpura é um livro extremamente denso. Não importa em que grupo demográfico você se encontre, esse livro terá algum tema relevante a você. Esse livro discute sobre questões raciais e de gênero, obviamente, mas ele também traz a tona: questões de classe, sexualidade, sororidade, masculinidade e sua relação com o abuso, religião, negros nos Estados Unidos versus negros na África… e ainda toca, em plano de fundo, na relação entre afro-americanos e nativo-americanos.

Quando, ao ler o primeiro capítulo, descobri sobre o que a história se tratava, eu logo a coloquei em uma caixa: “ah, então esse livro vai falar sobre mulheres negras, entendi”. Mas a cada capítulo outro assunto era levantado, e tratada com incrível sensibilidade – a conversa entre Celie e Shug sobre religião, por exemplo, é simplesmente incrível. A Cor Púrpura nunca se deixa ser “categorizado” ou “encaixotado”; não é um livro “que trata sobre tema x”. O tema de A Cor Púrpura é a vida; e todas as dificuldades que irão aparecer, e todos os obstáculos que precisam ser superados, mas ultimamente, sobre a felicidade que pode, sim, ser encontrada mesmo nas piores situações.