A Queda de Daenerys Targaryen, ou: as consequências das más adaptações

Daenerys Targaryen sempre foi uma das personagens mais complexas de As Crônicas de Gelo e Fogo. Seu destino final sempre foi tema de várias análises e teorias entre os fãs dos livros, principalmente após seu arco em A Dança dos Dragões. Quando a oitava temporada da série de tv Game of Thrones, adaptação dos livros, tornou claro para onde Daenerys estava caminhando – para se tornar a vilã final da série -, muitos fãs dos livros não ficaram chocados; pelo contrário, suas teorias foram apenas confirmadas. Para muitos leitores essa foi a culminação óbvia do arco da personagem.

Porém, essa reação não foi universal; pelo contrário, para a maioria dos fãs do show, esse foi um plot twist sem sentido, criado apenas para ser chocante e nada mais. Foi uma traição de sete temporadas de desenvolvimento.

Como dois grupos de fãs podem ter reações tão diferentes sobre um mesmo final? Não estamos falando da mesma história, afinal de contas? E é aí que está o cerne da questão: não, não estamos falando da mesma história. Não estamos nem falando da mesma personagem.

A Daenerys Targaryen dos livros não é a mesma Daenerys Targaryen da série de tv.

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A temporada final de Game of Thrones esteve fadada ao fracasso a partir do momento que os diretores D&D confirmaram que seguiriam o final que George RR Martin os deu. O show começou a se diferenciar de sua origem já na terceira temporada, diferenças sutis que foram crescendo e se tornando mais importantes conforme as temporadas avançavam; tentar voltar para a linha dos livros apenas nos últimos episódios nunca daria certo. Os personagens já estavam mudados, de formas que talvez possam até parecer inconsequentes em um primeiro momento, mas que foram importantes o suficiente para que, nessa última tentativa de empurrá-los de volta para a narrativa dos livros, fizesse com que os personagens perdessem qualquer verossimilhança. Eles não pareciam mais pessoas reais, tomando decisões sinceras; mas sim peças em um tabuleiro sendo empurradas para onde devem ir, sem nenhuma vontade própria.

Todos os personagens do show foram vítimas desse fenômeno, mas ninguém mais que Daenerys.

A Dany dos livros é uma personagem intrigante não só por seu carisma, simpatia, e dragões; mas também por sua complexidade, e seu grande conflito interno entre ser uma líder justa, e o lema da casa Targaryen, “fogo e sangue”. No decorrer dos livros, os Targaryen são estabelecidos como uma família de conquistadores instáveis, que por um lado trouxeram paz para Westeros – ou, é o que dizem ter feito; lembrem-se que “a história é contata pelos vencedores” e narradores não confiáveis são dois temas importantes para GRRM -, mas por outro causaram destruição por todo seu caminho:

” (…) Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram perto da loucura. Seu pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. Sempre que um novo Targaryen nasce” disse ele, “os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá”.”

O capítulo introdutório de Daenerys nos apresenta à uma menina sozinha, abusada por seu irmão e vendida como gado para uma tribo de “selvagens”. A única coisa que a mantém sã é o sonho de um dia voltar para casa – a casa do portão vermelho -, e a convicção, passada a ela por seu irmão e todos que estão a sua volta, de que Westeros pertence aos Targaryens. Reconquistar o Trono de Ferro é um direito de nascença: primeiro de Viserys, como o filho mais velho do último rei, e depois, quando Viserys morre, de Dany.

Talvez considerar o trono de um reino como direito de nascença não seja uma boa mentalidade a se ter, mas falaremos sobre isso mais para frente.

Nas páginas do primeiro livro, Dany cresce, ganha confiança em si mesma, se livra de seu irmão abusivo, ganha controle sobre os dothraki, e sim, ela perde o marido, mas ganha três dragões em troca. Estamos com todos os aparatos para um arco heroico a postos! Ou será mesmo?

“Salvou-me? Três desses cavaleiros já me estupraram antes de me salvar, menina. Vi a casa de meu Deus queimar, lá onde eu tinha curado homens e mulheres. Nas ruas eu vi pilhas de cabeças… a cabeça do padeiro que faz o meu pão, a cabeça um jovem menino que eu tinha curado de febre. Então … diga-me novamente exatamente o que você salvou? ”

Essa fala de Mirri Maz Duur, a bruxa que mata Khal Drogo e é queimada por Daenerys em um capítulo final heroico, sempre me chamou a atenção. Mirri é apresentada como uma vilã; afinal, Dany a salva e Mirri retribui a gentileza com uma tentativa de assassinato. Mas nessa hora devemos lembrar que esses são capítulos da Daenerys, ou seja, tudo é narrado do seu ponto de vista. E lembra quando eu falei que narradores não confiáveis são um dos temas importantes do autor?

Do ponto de vista de nossa narradora, Mirri Maz Duur foi salva. Mas o fato é que Daenerys é uma recém chegada na tribo do Khal Drogo. Ela é tratada relativamente bem pelos dothraki, logo toma o partido da tribo; porém ela não conhece realmente a cultura em que foi inserida, e a verdadeira relação entre a tribo de seu marido e as aldeias escravizadas por eles. Dany considera Mirri uma traidora pelo que ela fez com Khal Drogo mesmo depois de ter sido salva. Mas nas próprias palavras de Mirri Maz… Dany a salvou do que, exatamente? Os dothraki já haviam destruído sua aldeia, matado sua família, e a estuprado. Se essa história fosse contada do seu ponto de vista, não diríamos que sua vingança é justificada?

O conflito entre Daenerys e Mirri Maz Duur é uma cena pequena e sutil dentro da jornada heroica de Dany nos primeiros livros, e ela continua sua jornada sendo a conquistadora justa que prometeu. Matou homem escravistas, libertou escravos, tentou controlar seus dragões da melhor maneira que pode….. até que decide parar em Meereen e tentar  fazer o que não tinha feito antes: não só conquistar, mas também governar o que conquistou. E é a partir desse ponto que as rachaduras em sua jornada heroica começam a se tornar mais óbvias.

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O problema é que para conquistar você precisa de força, poder, e um certo teor de crueldade, para não exitar em matar quem precisa ser morto. Mas as qualidades necessárias para uma boa governante não são as mesmas de uma boa conquistadora. Para governar um povo, você precisa entendê-lo, escutá-lo, ter vontade de negociar um meio termo entre seus objetivos e as necessidades de seu povo. Porém, não é isso que Daenerys faz: durante seus capítulos em A Dança dos Dragões, ela se recusa a acatar as sugestões de seus conselheiros. É claro, as sugestões nem sempre eram boas; mas eram sugestões feitas por pessoas que viveram sua vida inteira naquele povo, que tem conhecimento sobre essa cultura, como ela funciona, e o que o povo quer. Daenerys poderia ter encontrado um meio termo. Mas ao invés de buscar entender o povo que governa, ela se mantém inflexível no que acredita ser o certo, e as consequências são óbvias: o final do livro nos mostra Dany incapacitada de governar Meereen, fugindo em seu dragão.

Nesse ponto, a jornada de Daenerys chega a uma encruzilhada. Ela tem duas opções: decidir se esforçar mais para se tornar uma boa governante, ouvir seus conselheiros, tentar entender a cultura do povo que governa; ou abraçar de vez seu lado conquistador. E infelizmente, Dany faz sua escolha:

“Você é o sangue do dragão. Dragões não plantam árvores. Lembre-se disso. Lembre-se de quem você é, o que você foi feita para ser. Lembre-se de suas palavras. Fogo e sangue.”

Daenerys escolhe o poder.

Em um primeiro momento, um personagem escolher ser uma conquistadora implacável pode soar incrível para o leitor. Afinal, isso é uma história de fantasia com dragões, certo? Todo mundo quer ver dragões destruindo cidades. Essa é apenas uma fantasia escapista! Deixe-nos nos divertir com heróis destruindo tudo!

Mas o fato é que As Crônicas de Gelo e Fogo não é uma fantasia escapista. George RR Martin começou a escrever essa série justamente porque ele se preocupa com as verdadeiras consequências de um mundo com dragões que podem destruir cidades inteiras. Em 2011, na época do lançamento de A Dança dos Dragões, é isso que o autor teve a dizer sobre os filhos de Daenerys:

“Dragons are the nuclear deterrent, and only Daenerys Targaryen has them, which in some ways makes her the most powerful person in the world. But is that sufficient? These are the kind of issues I’m trying to explore. The United States right now has the ability to destroy the world with our nuclear arsenal, but that doesn’t mean we can achieve specific geopolitical goals. Power is more subtle than that. You can have the power to destroy, but it doesn’t give you the power to reform, or improve, or build.”

Você pode ter o poder para destruir, mas isso não te dá o poder para reformar, melhorar, ou construir. Dragões não plantam árvores. Fogo e sangue.

Levando em conta o fato de que GRRM compara os dragões com armas nucleares, e o poder que esses animais dão a seus donos com as guerras dos Estados Unidos – e levando em conta o fato de que GRRM é notadamente um pacifista, que se posiciona contra o imperialismo americano…. as coisas não parecem muito boas para Daenerys nesse momento.

Suas conquistas até esse ponto foram na base do poder, na base de seus dragões serem armas de guerra praticamente invencíveis. E até esse momento, Dany os usou nas pessoas que os mereciam, como por exemplo escravocratas. Mas essas constantes vitórias apenas confirmaram o que Dany aprendeu com seu irmão e com os últimos apoiadores dos Targaryens: esse é seu direito de nascença. Você nasceu para retomar o Trono de Ferro. Você é a Mãe dos Dragões, Mhysa, A Quebradora de Correntes. Meereen não é seu reino, Westeros é. É eles que te esperam.

Mas o fato é que… Westeros não espera Daenerys. Na verdade os westerosi não esperam nenhum Targaryen, e querem é ficar longe de toda essa bagunça com os dragões, porque eles já passaram por isso uma vez e não foi legal. Os reinos de Westeros querem sua independência de volta. Não há nenhum escravocrata para ser morto, ou pessoas para serem libertas de suas correntes, a menos que olhemos para o reino unificado de Westeros em si como uma grande corrente. Daenerys está voltando para Westeros para retomar o Trono e reunificar os reinos, enquanto os reinos estão lutando pelo contrário.

É óbvio, portanto, que quando Daenerys chegar a Westeros, ela não encontrará pessoas a clamando como Mhysa, mas sim encontrará uma oposição vinda do povo talvez pela primeira vez em sua jornada. E o que uma pessoa com o poder de bombas nucleares, que cresceu acreditando que o trono é seu por direito, e que recentemente decidiu abraçar seu legado de conquistadora, ao invés de aprender a pensar em outras alternativas, irá fazer quando encontrar essa oposição? Quando em todas as outras vezes até agora, sua oposição se mostrou ser pessoas terríveis, que confirmaram sua visão de que ela é a salvadora do reino?

Não é a toa que basicamente todas as teorias sobre o retorno de Daenerys a Westeros termina com Kings Landing totalmente destruída.

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Olhando para a jornada de Daenerys desse jeito, ela parece uma construção de personagem incrível. Uma grande subversão do arquétipo de herói conquistador messiânico, uma história de origem que não é de herói, mas sim de vilão, mas que ainda assim é apresentada de forma complexa e multidimensional. Se Daenerys não passar por um arco de redenção e realmente precisar ser morta no final, os leitores vão entender todos os passos que a levaram a essa morte, porque nós estávamos com Dany durante todo o caminho: nós vimos seu conflito interno, sua luta para ser uma boa líder, seu erro em Meereen, o momento em que sucumbe e abraça seu lado de fogo e sangue.

Mas não é isso que aconteceu com a Daenerys Targaryen do show da HBO.

A Dany do show não passou por nenhum conflito interno, por nenhum momento de dúvida. Suas decisões nunca foram postas em cheque pela narrativa antes do penúltimo episódio do show. D&D, ao invés de mostrarem uma personagem multifacetada, abraçaram a primeira impressão de Daenerys como uma heroína messiânica e nunca mais mudaram sua abordagem. Se nós não vimos as sementes da “Rainha Louca” serem plantadas nas temporadas anteriores, como que podemos aceitar essa súbita mudança de direção da personagem?

É claro, D&D tentaram justificar suas decisões criativas, dizendo que na verdade as cenas em que Daenerys mata seu irmão abusivo e donos de escravos são o prenúncio de sua queda. Mas além de esse não ser o problema da Dany – o problema não foi matar escravocratas, mas sim o que ela decide fazer depois disso -, o fato é que o show nunca apresentou essas cenas como problemáticas. Pelo contrário, toda a cinematografia é feita para aumentar o teor vitorioso da personagem, e terminar de mitificá-la como a grande Heroína do Povo.

O que, é claro, leva a narrativa a algumas conclusões um tanto quanto problemáticas. Ao apresentar a jornada de Essos sem nenhum questionamento, uma narrativa que era anti-imperialista – conquistadora com poderes nucleares chega em uma terra distante e acha que sabe mais sobre governar aquele reino que o próprio povo – se torna não só imperialista, como também racista e misógina.

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Quando D&D mudaram os escravos de Essos, que são explicitamente descritos nos livros como sendo pessoas de várias raças e etnias, para escravos exclusivamente negros, eles apenas exacerbaram o problema de apresentar Dany como uma grande salvadora sem nenhum questionamento. Não é a toa que quando a cena da Mhysa foi ao ar, os escritores receberam várias críticas sobre estarem escrevendo uma narrativa de “White Savior”.

Além disso, o show cortou grande parte da narrativa de Dorne, que é um reino populado por pessoas não brancas em Westeros. Assim, D&D fizeram as únicas pessoas não brancas do show serem os escravos de Dany, que invadem Westeros e são hostilizados por seus moradores. O povo de Winterfell não olhar com bons olhos o exército Targaryen invadindo seu reino faz sentido, mas quando esse exército é a única representação negra do show – novamente, porque os escritores escolheram excluir Dorne -, as implicações não são das melhores.

Outra implicação problemática que D&D criaram foi toda a causa da “loucura” de Daenerys. Bem desenvolvida e explicada, como está sendo até agora nos livros, esse é um arco de queda de uma personagem com mensagens explicitamente anti-imperialistas e pacifistas. Porém, sem nenhuma das explicações nas temporadas anteriores, o que somos apresentados no show é… uma mulher competente e ambiciosa forçada a “enlouquecer” no momento que chega perto de sentar no trono, para que um homem aleatório, que não conquistou nem metade de seu sucesso, fique em seu lugar.

Assim como D&D escolhem mostrar as únicas pessoas não brancas do show serem ex-escravos parte de um exército selvagem que é derrotado e vai embora de Westeros, eles escolheram mostrar as únicas mulheres no poder sendo loucas que precisam ser mortas. É claro, Arya e Sansa poderiam ser usadas para escapar desse clichê misógino, mas os diretores escolheram não focar nelas; Arya não tem um arco ligado à política e logo nunca entraria na briga pelo trono, e Sansa foi largamente ignorada nesses últimos episódios. As únicas mulheres com foco são as rainhas loucas e os homens que precisam nobremente pará-las.

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Meu maior medo com As Crônicas de Gelo e Fogo era de que Dany teria sua personagem destruída para que Jon e Tyrion pudessem ser endeusados como os salvadores de Westeros. Para meu alívio, Jon não termina como rei, e tanto ele quanto Tyrion são ignorados durante grande parte da temporada. Os telespectadores terminaram o show finalmente sentido um pouco do desgosto que eu sinto por esses personagens. Mas isso não foi algo premeditado de D&D: afinal, dentro do universo do show, os personagens ainda amam ambos. Jon ainda é amado por seus súditos, e seu exílio é visto como algo trágico, uma grande perda para Winterfell. Tyrion é aclamado pelos personagens como um grande estrategista, apesar de não ter feito nada a temporada inteira. Se esses personagens não receberam a aclamação que achei que receberiam, não é por algum propósito da parte de D&D, mas sim por pura incompetência.

Eu tenho criticado as escolhas criativas de D&D desde a terceira temporada. Eu sempre falei que ao apagarem as sutilezas e incongruências de personagens como Daenerys, Jaime, e Tyrion, isso traria consequências para a narrativa que GRRM pretendia apresentar. Enquanto George RR Martin está escrevendo personagens cinzas, onde até os heróis mais nobres tem seus defeitos, D&D optaram por uma abordagem plana, onde seus personagens favoritos não apresentam nenhum momento que não seja positivo ou heroico. O que me surpreende é a decisão de, mesmo assim, continuar com o plano de terminar a série com o final pensado para os livros. Não seria melhor criar um final totalmente novo para esses personagens totalmente novos? Enquanto um final com um casamento entre Jon e Dany estaria incrivelmente deslocado nos livros, ele seria congruente com o que o show construiu até esse momento. Por que decidir destruir a fanbase que cultivaram durante todas essas temporadas?

Meu palpite é que D&D realmente acharam que seus “plot twists” seriam um sucesso. Após o sucesso da morte de Ned na primeira temporada, e o Casamento Vermelho na terceira, D&D parecem ter chegado a conclusão de que sua audiência quer cenas chocantes e surpresas sangrentas. Mas o que eles não perceberam é que os choques dessas duas cenas apenas tiveram sucesso porque a história foi construída para chegar nesses pontos. Ned, antes de ser morto, é construído como um personagem falível. A mesma coisa com Robb. Seus erros foram mostrados pela narrativa, e aí sim culminaram em um grande evento. O mesmo aconteceria com a queda de Dany, eu tenho certeza: se ela tivesse sido construída com mais cuidado, no decorrer das temporadas anteriores, seu episódio seria tão marcante quanto os anteriores. Mas D&D optaram pelo contrário: focaram no heroismo de Dany, para que sua queda fosse ainda mais chocante. E assim, acidentalmente criaram uma narrativa totalmente incongruente com si mesma.

O que me apaziga é a certeza de que o mesmo não acontecerá com os livros. Sim, GRRM está demorando séculos para lançar a continuação, blá blá blá, insira piada sobre os livros nunca serem terminados aqui; mas essa demora toda é porque o próprio autor admitiu que o plot do livro se tornou mais complicado do que o esperado, então ele está tentando solucionar todos os problemas com a maior atenção e calma possível. E sinceramente, é isso que me dá certeza de que se recebermos os livros em mãos, as jornadas de todos os personagens farão sentido. O criador da história está, para o choque de todos, pensando nela.

Portanto, eu sei que muitas pessoas se desanimaram ao já saber o final da saga, e estão cogitando nem ler os livros. Mas eu, como alguém que nunca me importei com spoilers, na verdade estou mais animada com As Crônicas de Gelo e Fogo do que já estive em anos. Ok, já sabemos o final dos personagens principais (ou pelo menos, sua maioria; eu ainda tenho esperanças sobre o final do Tyrion ser diferente do que vimos), mas isso só prova que a jornada para chegar até esse ponto será extremamente complexa e cheia de reviravoltas. Eu pessoalmente mal posso esperar.

Sobre Sarazanmai e Kunihiko Ikuhara

Ikuhara finalmente está de volta, e anime está salvo por mais uma temporada.

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Eu sempre tive uma relação inconstante com anime. Já passei for fases onde a única coisa que eu fazia no computador era assistir desenhos japoneses – inclusive, foi isso que me fez entrar no mundo dos fandoms e fanfics -, e também já tive fases onde eu passava anos sem tocar em nenhuma animação. Já tive anos onde acompanhei todas as “temporadas” de animes, assistindo pelo menos o primeiro episódio de todos os lançamentos (obviamente, isso foi anos atrás quando cada temporada não lançava mais de dez shows por vez). Hoje em dia, é mais provável eu passar muito tempo sem assistir nada, e pegar um anime para assistir que já era relacionado a algo que eu gostava – seja uma adaptação de mangá, jogo, ou relacionado a trabalhos anteriores do criador.

Mas apesar dessa inconstância, anime foi uma mídia que teve muita influência no modo que consumo ficção. E nenhum anime me influenciou mais do que Mawaru Penguindrum, de Kunihiko Ikuhara.

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Ikuhara é principalmente conhecido por ser o criador de Revolutionary Girl Utena, o que é mais do que compreensível. Utena é um clássico do anime, que é lembrado como uma obra prima do gênero e, até hoje, considerado por muitos a maior obra do autor. Mas Mawaru Penguindrum foi o primeiro “projeto Ikuhara” que eu conheci, e o primeiro que acompanhei desde seu (explosivo) início, semana a semana, até sua (explosiva) conclusão. Portanto, mesmo que Utena possa ser considerado o projeto superior, o valor sentimental de acompanhar Penguindrum o tornou meu anime favorito de todos os tempos – e o anime que mais me influenciou.

Quem me conhece, sabe que eu não tenho paciência para acompanhar séries inacabadas. Mesmo quando se trata de minhas séries literárias favoritas – A Saga dos Corvos e Príncipe Cativo -, as esperas entre um livro e outro foram épocas agonizantes. Sempre fui muito mais fã de ler ou assistir toda uma série de uma vez só, ao invés de “saborear” as pausas entre um episódio e outro, como muitos dizem preferir. Esse é um dos motivos por eu não ver nenhum problema em spoilers – eu realmente não tenho paciência para descobrir o que irá acontecer só daqui a um ano, ou uma semana.

Mawaru Penguindrum, porém, foi a grande exceção a essa regra. Meu amor por essa série vem não só da qualidade da história em si, mas também das memórias de passar horas no tumblr analisando o episódio da semana, e teorizando sobre o que poderia acontecer na continuação. A experiência dessa série não acabava com os episódios em si; mas sim se alastrava pelo resto do dia, da semana de espera, procurando por teorias e análises das imagens apresentadas no episódio da vez; o que elas podem significar? o que Ikuhara quis dizer com isso?

Eu logo percebi que essa experiência não era única de Penguindrum, mas sim de todos os animes feitos por Ikuhara. Ainda que, é claro, “apenas” assistir seus animes já seja uma experiência recompensadora, é um fato que procurar fontes externas sobre seus animes torna a compreensão da história ainda mais completa. Ikuhara, afinal de contas, é conhecido por ser um criador de histórias alegóricas, cheia de simbolismos, e referências culturais japonesas. Mawaru Penguindrum, por exemplo, faz referência direta ao Ataque Terrorista de 1995: um evento marcante para os japoneses, mas desconhecido por nós ocidentais. E enquanto é possível aproveitar Penguindrum sem conhecimento desse evento, estudar sobre o ocorrido, os motivos do ataque e suas consequências, recontextualiza grande parte do anime, e torna sua mensagem principal ainda mais impactante.

De certa forma, e por mais dramático que possa parecer, os animes do Ikuhara me lembram o porque decidi cursar Letras, e focar especificamente em literatura: eu amo analisar, teorizar, e procurar significado em histórias diferentes e complexas. Porém, por mais que eu fale dessa parte de análise literária e teórica, os animes do Ikuhara em nenhum momento se tornam “pseudo-intelectuais” no sentido negativo, onde só é possível gostar da obra de forma cerebral e “culta”. Ikuhara preza por seus simbolismos e temas alegóricos, mas ele também preza pela diversão, pura e simples; seus animes são muito inteligentes, sim, mas também muito engraçados. Não é a toa que Sarazanmai começa com um primeiro episódio ultra colorido, cheio de piadas e acontecimentos bizarros. Em um primeiro momento, o mais importante é fazer o consumidor se interessar e se divertir; é apenas após fisgar a atenção do telespectador que Ikuhara pode finalmente começar a introduzir os temas filosóficos da sua obra.

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Sarazanmai está seguindo a mesma fórmula de todos os outros animes do Ikuhara: um primeiro episódio explosivo, que chama a atenção por seus acontecimentos estranhos e bizarros. Depois, episódios divertidos e bem humorados, apresentando os personagens e o mundo. A repetição de cenas também é utilizada, tudo para construir na audiência um sentimento de segurança, de “eu sei como esse episódio vai ser”… para aí sim, no meio da temporada, quando toda a audiência se sente segura no que está assistindo… é quando o tom da série muda subitamente, os temas sérios finalmente são apresentados, e o anime que era “só” divertido rapidamente se torna o anime que te faz chorar.

Essa mudança de tom no meio da história, e a quebra de expectativas entre o início do anime e sua “verdadeira” narrativa, é outra característica que gosto bastante; não só nos animes do Ikuhara, mas em histórias em geral. Naomi Novik (Enraizados, Temeraire, Spinning Silver) é uma autora que também faz uso desse artifício de forma maestral. Sei que nem todos os leitores gostam disso, mas a sensação de ser surpreendida pela premissa de uma história – de no início achar que essa é uma narrativa direta e simples, mas que mais tarde se abre e se revela como uma narrativa muito mais complexa do que o esperado – é uma de minhas formas favoritas de ser surpreendida por uma obra de ficção. E o Ikuhara, não a toa, é um dos mestres desse artifício.

Sarazanmai também continua a outra fórmula do criador de introduzir à narrativa temas relevantes para a sociedade atual. Utena fala sobre o patriarcado e papéis de gênero; Penguindrum fala sobre o capitalismo e os grupos isolados pela sociedade; Yuri Kuma fala sobre homofobia e heteronormatividade; e agora Sarazanmai parece focar no tema de conexão, ou da dificuldade de se conectar – verdadeiramente – com o outro. Como o anime ainda não foi concluído, não é possível dizer muito sobre qual é a mensagem exata que Ikuhara quer passar; mas já é possível notar a reaparição de temas queridos ao criador, como questões de gênero, sexualidade, e, se as caixas “kappazon” forem indicativa, anti-capitalismo.

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Por enquanto, Sarazanmai está sendo o anime mais simples – comparativamente falando – do Ikuhara. Sim, esse é um anime inundado de folclore japonês, sobre um kappa que extrai “esferas de desejo” de três garotos pelo ânus; mas em questão de metáforas, simbolismo, e subtexto, é o anime mais direto e de rápida compreensão do autor. Ikuhara ama simbolismo, mas ele não é o maior fã de subtexto. É possível notar uma clara evolução, de Utena até Sarazanmai, na questão de discrição do criador: conforme os anos passam, menos ele está interessado em ser discreto sobre seus temas. Então logo no primeiro episódio você é bombardeado com frases de duplo sentido e visuais psicodélicos; mas também o tema central da história já é dada em sua introdução: caixas carregam os desejos mais secretos das pessoas. Se você deixar sua caixa te consumir, você pode virar um monstro. Ao revelar seu segredo para todos, a verdadeira conexão com o outro se torna possível.

Logo, para novatos do mundo Ikuhara, Sarazanmai é uma ótima opção para primeiro contato. Se não, recomendo Mawaru Penguindrum, apenas porque é meu anime preferido. Mas não importa com qual anime você decida começar a conhecer o Ikuhara, eu recomendo fortemente pelo menos tentar dar a esse criador uma chance. Digo tentar porque sei que, no fim, ele não será para todo mundo. Histórias extremamente únicas não são exatamente conhecidos pelo seu apelo às massas; nem todos irão se identificar com o estilo do criador, ou com suas mensagens. Mas conhecê-lo é essencial. Essencial não apenas para aqueles que gostam de anime, para conhecer uma voz única e extremamente marcante nesse meio; mas essencial para conhecer um artista único para a ficção em geral. Para mim, o Ikuhara não é “só” um diretor de anime extremamente importante – o que ele é -, mas mesmo aqueles que subestimam anime como “apenas desenhos japoneses” poderiam aprender muito sobre impacto narrativo com o primeiro episódio de Sarazanmai.

Vídeo: QUEERBAITING – O que é? Como funciona?

Primeiro: Sim, eu sei que no meio do vídeo começo a falar o nome do Alvo e Escórpio errado. Como eles têm nomes diferentes na versão inglesa e brasileira, eu acabo misturando os dois hahaha.

Já faz algum tempo que estava pensando em fazer esse vídeo, então aqui está. Quero fazer mais vídeos de discussão daqui para frente; filmar foi um saco mas o produto final até que ficou interessante!

HORÁRIOS

01:07 O que é Queerbaiting?

07:43 Seu ship é queerbaiting?

10:24 Harry Potter e a Criança Amaldiçoada

Resenha: Sense8

Você, que não aguenta seriados lentos, com plots confusos e misteriosos: serei sincera, talvez esse post (e essa série) não seja para você. Mas você, que ama seriados baseados na exploração íntima de personagens e que trabalha com conceitos novos: já assistiu Sense8?

Resenha Sense8

Estava esperando por essa série desde que os primeiros trailers começaram a aparecer. O fato de ser feita pelos irmãos Wachowski (Trilogia Matrix, Jupiter Ascending) já despertou meu interesse: seus filmes, mesmo quando não dão certo, sempre apresentam ideias diferentes e fantasiosas, justamente o que procuro. Quando li a premissa de Sense8, foi impossível não se apaixonar: oito estranhos espalhados pelo mundo que, de repente, desenvolvem um link mental entre si? Mesmo que a série se tornasse horrível, teria valido a pena só por lançar essa ideia no mundo. Para minha sorte, não fui decepcionada.

Quando sentar para assistir o primeiro episódio, é bom se preparar para uma introdução lenta de todos os oito personagens, e uma introdução mais lenta ainda dos vilões e da “história em si”; o seriado termina os três episódios (de uma hora cada) praticamente sem revelar o “objetivo principal” da história, os vilões, ou até mesmo o caminho que os protagonistas devem tomar. Ao invés disso, Sense8 se preocupa em mostrar à audiência cada detalhe da vida interior do personagem. A “lentidão” do desenvolvimento da história dá espaço para uma vasta exploração das motivações, desejos, e passado de cada um dos oito protagonistas.

Os irmãos Wachowski disseram que essa primeira temporada é o “prólogo” de Sense8: uma apresentação do mundo e seus personagens. De fato, é apenas no final da primeira temporada que o verdadeiro “mistério” da série – certos remédios da empresa farmacêutica – começa a ser revelado. Similarmente, os personagens passam a maior parte do tempo sozinhos, se encontrando apenas em certos momentos, até se juntarem no último episódio. Faz sentido para a construção da história, mas ainda assim é um fato triste, pois os melhores momentos da série são quando dois ou mais “sensates” – como as pessoas com os links mentais são chamadas – se juntam.

O ponto principal da série é justamente esse: Sense8 não é uma história sobre conspirações governamentais e corrupção farmacêutica, mas sim uma história sobre como oito estranhos se conhecem, ajudam um ao outro, e se tornam uma família. Tal ajuda não é apenas ajuda em uma luta, ou hackear sites da polícia, mas sim ajuda emocional, oferecendo conselhos, ou apenas uma companhia em momentos difíceis. Certas pessoas criticaram a presença da Riley no seriado – “ela é apenas uma DJ, não tem nenhuma ‘habilidade’ ou ‘talento’ útil” – mas o que não perceberam é que a habilidade de Riley de oferecer conforto aos outros sensates é tão útil quanto, por exemplo, o talento em artes marciais de Sun.

Outro ponto positivo da série é como os irmãos Wachowski levam seus personagens em direções inesperadas. Antes do lançamento da série, a Netflix lançou uma série de character trailers introduzindo cada um dos oito sensates. Segundo tais trailers, cada personagem parece oferecer uma trajetória interessante, mas previsível: Lito, o ator mexicano que é secretamente gay e precisa lidar com uma atriz obcecada com ele. Sun, a empresária coreana que trabalha na empresa da família, mas secretamente participa de lutas. E é claro, Will, o policial de chicago, que será o foco central do seriado. Olhando para esses resumos, parece óbvio o percurso que cada personagem irá trilhar durante a temporada. E os trailers não mentem: todos os personagens são exatamente o que os trailers mostram…. durante o primeiro episódio. Os irmãos Wachowski partem dessas premissas óbvias e as levam a desenvolvimentos inesperados. Isso se torna especialmente verdadeiro nas histórias de Lito e Sun. O jeito com que Sense8 lidou com a tal “atriz obcecada”  foi uma surpresa mais do que agradável, e Sun acabou se tornando a personagem com a história mais interessante, e pela qual menos posso esperar para ver sua continuação na segunda temporada.

Com tantos personagens carismáticos e histórias interessantes, talvez a maior crítica de Sense8 seja, ironicamente, a falta de tempo. O foco durante a maior parte da primeira temporada é recai sob os personagens localizados nos Estados Unidos e Inglaterra; Sun, Lito, Kala, e Capheus, por não estarem geograficamente próximos do epicentro da história, se tornam levemente deslocados e subutilizados. Isso é algo que espero que a segunda temporada corrija; Sun, Kala, e Capheus estão todos ligados à indústria farmacêutica, que parece que será o próximo foco do seriado. É claro, se Sense8 for renovado: ainda não há nenhuma confirmação de uma segunda temporada, portanto deixem a Netflix saber que todos vocês estão interessados em uma continuação!

Sense8 é uma ótima opção para todos aqueles interessados em premissas de fantasia ou ficção científica, mas com um foco inequivocamente humano. Apenas uma dica: não assistam sem fones de ouvido enquanto na presença da família, pois as cenas de sexo são frequentes: espere uma grande surpresa nesse aspecto durante o sexto episódio!

Resenha: Mad Max: Fury Road

Filmes de ação, que são 90% explosões e perseguições de carro – projetados para entreter uma platéia durante uma hora e meia/duas horas de cinema,- podem também carregar mensagens filosóficas? Podem também oferecer um comentário social que é considerado corajoso e até radical para Hollywood? Filmes de ação, que são 90% explosões e perseguições de carro; podem, ao mesmo tempo, conter um núcleo emotivo que toca profundamente sua platéia em um nível humano?

Mad Max: Fury Road, dirigido por George Miller, prova que sim.

Mad Max Fury Road

Mad Max é uma franquia australiana de filmes de ação pós-apocalípticos criada por George Miller (e Byron Kennedy, que morreu em 1983). O primeiro filme é intitulado Mad Max, lançado em 1979, e conta a história do policial Max Rockatansky (Mel Gibson) em um mundo onde a sociedade como conhecemos é destruída. Seu sucesso foi tão grande que ainda rendeu duas sequências, Mad Max 2 (1981) e Mad Max Beyond Thunderdome (1985). A então trilogia marcou todo um gênero de filmes de ação e apocalipse: o arquétipo do herói traumatizado e silencioso que vaga sozinho se torna dominante no gênero graças à franquia. Ela é definida pelas seguintes características: perseguições de carro, mortes e vingança, muita violência, e um protagonista silencioso (se Mad Max tiver cinco falas por filme, é muito) que, ao vagar pelo deserto pós-apocalíptico, acaba se juntando a um grupo de pessoas com certos problemas, ajuda-as, e enfim volta a vagar sozinho.

E é assim que chegamos a Mad Max: Fury Road, lançado em 2015: 30 anos após Thunderdome. Dessa vez, Max Rockatansky (Tom Hardy) acaba se juntando à Imperator Furiosa (Charlize Theron) em sua missão de salvar as Cinco Esposas de sua escravidão pelo tirano Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne).

Fury Road segue a linha de seus predecessores: o filme é basicamente uma longa perseguição de carro, com inúmeras explosões, basicamente zero diálogo, e tensão do início ao fim. E mesmo assim, em meio a esses temas já tão batidos, Fury Road consegue se elevar entre os diversos cansativos e tediosos filmes de ação graças a uma cinematografia inovadora, um grupo de personagens fortes, e uma execução exímia dos ditos temas batidos, inovando-os ao juntá-los com um tema inesperado para um filme de ação: os perigos da hiper masculinidade em nossa sociedade.

A maioria das pessoas que usam a internet regularmente provavelmente ouviram sobre o burburinho que antecedeu o lançamento de Fury Road; foi basicamente impossível não ouvir sobre os chamados MRAs (“Male Rights Activists”, Ativistas dos Direitos dos Homens) que clamavam por um boicote a Fury Road, pois o filme se tratava de uma “enganação” para os “homens alvo público de filmes de ação”, que esperavam assistir duas horas de explosões e se depararam com mulheres gritando “Não somos objetos!” durante todo o filme. É claro, a fúria dos MRAs não funcionou como planejavam, e na verdade eles contribuíram para que o público de Fury Road aumentasse.

Isso resultou em várias discussões sobre se, de fato, Fury Road seria um filme feminista. É minha opinião que nenhum filme/livro/seriado/etc é “feminista”, pois nenhuma ficção poderia incluir todos os ângulos existentes no feminismo; o que é possível é analisar filmes/livros/seriados/etc por um ângulo feminista, e tirar conclusões positivas ou negativas de tal análise. Fury Road é exemplar segundo esse critério. Certas críticas chamam atenção para o fato de que Fury Road não pode ser considerado um incrível ganho feminista quando trata de um tema tão óbvio e simples quanto “mulheres não são objetos”. Mas visto o ultraje dos MRAs, diria que é bastante considerável.

Pois bem, e como tal ângulo feminista é concretizado em Fury Road? A primeira camada dessa análise é óbvia: todas as personagens femininas que populam o mundo de Mad Max: Fury Road.

As Cinco Esposas

Esse é um filme em que o objetivo principal é libertar um grupo de mulheres mantidas como escravas sexuais do vilão. Desse sumário, você logo supõem o tratamento que essas garotas receberão em um filme de ação: apenas objetos a serem salvos, e uma delas se tornando a recompensa do herói no final do filme. Objetos que têm o papel de ser “colírio para os olhos” do espectador, filmadas para que o dito espectador possa “apreciar” seus vários dotes. Basicamente, cinco cópias de Megan Fox em Transformers.

Fury Road brinca com essas suposições da audiência durante a cena de introdução das Cinco Esposas. Max, correndo pelo deserto desesperado por qualquer meio de transporte e preparado para inúmeros obstáculos, se esgueira pelo caminhão de Furiosa e se prepara para identificar seus inimigos…. e ao invés disso se depara com cinco moças imaculadas – algo raro para o mundo pós-apocalíptico de Mad Max -, lavando a areia de seus corpos. Essa primeira cena é emoldurada como a descoberta de um oásis em meio ao deserto, e duvido que tenha sido só minha sessão de cinema que tenha sido povoada por risinhos e assobios de homens. É a partir dessa cena de poucos segundos que todas as suposições do espectador são formadas, e é a partir dessa cena que George Miller começa a derrubá-las.

Imediatamente após a câmera passa pelas Esposas, ela foca em dois pontos: a mangueira de água, e o cinto de castidade de uma das esposas sendo quebrado por outra. Apenas dois close-ups, que passam as informações para a audiência: essa moças são fugitivas de um tipo específico de cativeiro, e Max não está deslumbrado com elas, mas sim com a água – mercadoria já estabelecida pelo filme como escassa e extremamente valorizada, o suficiente para iniciar guerras. Max se importa com a água e o caminhão para sua fuga, não com a aparência das Esposas. E a câmera confirma o ponto de vista de Max: em nenhum momento, tanto nessa cena quanto em todo o resto do filme, a câmera se demora pelo corpo das Esposas. Em nenhum momento a câmera as sexualiza. Elas são identificadas como vítimas de abuso e estupro, mas em nenhum momento somos mostrados o abuso e estupro; a câmera não tira proveito das cenas de sofrimento para sexualizá-las, como muitos filmes e séries fazem (oi Game of Thrones). As Esposas simplesmente dizem “estamos cansadas de ser abusadas” e em nenhum momento a câmera as contradiz.

Uma suposição derrubada, George Miller logo parte para outra: a das Esposas serem donzelas indefesas, que não contribuem em nada para sua fuga. Ao ver a mangueira de água, Max imediatamente as ameça com sua arma, e as Esposas, previsivelmente, agem assustadas e obedientes. Também previsivelmente, se dá início a uma cena de luta entre Max e Furiosa. E é nesse ponto que George Miller novamente inova: as Esposas não permanecem ao fundo da cena, apenas olhando e, no máximo, soltando alguns gritos assustados. Elas ajudam Furiosa, puxando a corrente de Max, tentando atrapalhá-lo, jogando armas para Furiosa. Elas não são peritas em combate como Furiosa, mas ainda assim tomam decisões que auxiliam sua fuga. Cada uma das Esposas domina algo diferente, que se tornará indispensável para o desenvolvimento da história. Elas não são apenas bagagem que Furiosa e Max carregam, mas sim seres humanos em controle de seu ambiente.

E cada uma das Esposas é um ser humano individualizado. Levando em conta o quase inexistente diálogo e constantes cenas de ação do filme, seria de se esperar que não haja espaço para o desenvolvimento de dois protagonistas, muito menos de todo o elenco. Porém, é exatamente isso que Fury Road consegue. Ao final do filme, a audiência conhece cada uma das Esposas, suas qualidades e defeitos. Elas não são substituíveis entre si. O papel de Capable não pode ser substituído pelo papel de Splendid na história, que por sua vez não pode ser substituída por Toast. Fury Road não deixa nenhuma brecha para que as Esposas sejam interpretadas apenas como donzelas genéricas.

Outro jeito de expor as personalidades de cada Esposa é por seu vestuário. No começo do filme, todas vestem as roupas do cativeiro, pedaços de pano que não deixam quase nada para a imaginação. Mas ao longo de sua jornada, cada Esposa vai ser apossando de trajes diferentes: Capable se cobre com uma manta colorida, enquanto Toast se apropria de um pedaço de tecido branco para cobrir os cabelos. Seu mantra de “Não somos objetos” é afirmado de diversas formas ao longo do filme: pelo respeito da câmera, pelas decisões de como se vestir, pela total agência que cada uma das Esposas tem sobre suas ações.

Com toda essa atenção e trabalho colocados nas personagens das Esposas, mesmo assim George Miller estava consciente de que tudo daria errado se escolhesse o herói errado para elas:

Inicialmente, não havia uma agenda feminista. A coisa que as (personagens) procuravam era não ser um objeto, mas as cinco esposas precisavam de um guerreiro. Mas o guerreiro não poderia ser um homem pegando cinco esposas de outro homem. Essa é uma história completamente diferente. Então tudo nasceu daí.

Tom Hardy Apologized to George Miller for ‘Mad Max: Fury Road’ (tradução livre minha)

E é assim que surge Furiosa.

mad max fury road furiosa

Quando se diz que vingança e fúria são os temas de Fury Road, se espera que esses sejam os sentimentos de Max; Max, que se diz insano, que faria de tudo para sobreviver. Porém, ao assistir o filme, logo descobre-se que Max Insano na verdade é Max Apático. Seu único objetivo de sobreviver se desenvolve em desinteresse sobre seu mundo externo. Ao invés disso, a vingança e fúria centrais para a história de Fury Road são de Furiosa.

Furiosa é introduzida como uma “Imperator”, uma operadora dos caminhões de Immortan Joe, posição de grande poder na distopia de Mad Max. De cabeça raspada e expressão taciturna, ela dirige seu caminhão pelo deserto, aparentando obedecer as ordens de Joe, até que subitamente muda de estrada e revela sua traição. Assim se dá o começo da mega perseguição do filme.

A história de vida dessa personagem não é explicitamente contada à platéia. Mas assim como ocorre com o passado de Max, durante o filme são dadas diversas dicas para que seu passado se torne claro. Em uma sociedade que trata as mulheres como objetos, Furiosa consegue alcançar uma posição de poder tão grande que se torna parte do círculo de confiança de Immortan Joe. Para chegar nessa posição, Furiosa teve que não apenas se tornar um ser agênero (compare a aparência dela – cabelo raspado, roupas longas – com a aparência das Esposas), como também teve que apoiar e promover um sistema que destrói pessoas como ela. Sua jornada, porém, não é em nenhum momento altruísta, apenas visando a ajudar as Esposas. Furiosa procura a redenção de seu passado, e a construção de um novo mundo.

Furiosa é uma heroína inesperada em um gênero dominado por heróis masculinos: uma mulher, fruto da fúria feminina, que luta por mulheres.

mad max fury road capable e nux

Em uma dinâmica já estabelecida nos filmes anteriores, Max é o narrador do filme, mas o núcleo de desenvolvimento do filme são os personagens a quem se junta. Como visto até agora, é o arco emotivo de Furiosa que recebe o foco em Fury Road. Mas isso não significa que Max não tenha seu próprio arco; e que, ele também, não tenha algo de inovador para apresentar a Hollywood. Pois Max também é uma das vítimas da opressão que Furiosa e as Esposas lutam contra.

O mantra principal de Fury Road é “Não somos objetos”. A sociedade que Immortan Joe constrói é mostrada como a criadora dessa objetificação. É uma sociedade que valoriza guerra, violência, e morte. Immortan Joe cria um culto baseado nesses valores para que seus soldados, os War Boys, o obedeçam. Ele convence esses garotos de que o único jeito de chegar à Valhala é por uma morte gloriosa em combate, um pedaço de cultura obviamente emprestado dos Vikings, que é cultuado com um fervor religioso pelos War Boys. Fury Road vai ainda mais além, e deixa subentendido que é essa cultura de Immortan Joe que causou o estado atual desse mundo pós-apocalíptico.

we're not to blame

“Não é nossa culpa.” / “Então quem matou o mundo?” por magneto.pt

Posicionadas diretamente opostas aos valores de Immortan Joe estão Furiosa e as Cinco Esposas, que buscam a criação de uma nova sociedade simbolizada pelo grupo de mulheres que encontram no deserto, as Vuvalini. Elas pregam a paz: guerreiam por necessidade, mas buscam um mundo em que a violência não seja mais necessária. A diferença entre os dois grupos é explicitada pelas mercadorias raras que valorizam: enquanto Immortan Joe saqueia vilas para obter mais gasolina e armas, as Vuvalini viajam pelo deserto procurando um solo fértil o suficiente para que possam plantar diversas espécies de plantas que se tornaram extintas.

Furiosa e as Cinco Esposas apoiam desde o começo do filme os ideais das Vuvalini. Mas o filme não simplesmente posiciona homens versus mulheres, e conclui sua mensagem nesse ponto; ele vai além e mostra como os ideais que Immortan Joe cultua – a hiper masculinidade – também prejudicam os homens. Os dois personagens masculinos considerados heróis, ao invés de vilões, de Fury Road, tratam justamente desse fato: Max, obviamente, e Nux.

O arco emocional de Nux é o mais simples dos dois, e o mais óbvio, logo mais rápido de ser entendido pela audiência. Nux é introduzido como um dos War Boys perseguindo Furiosa, desesperado – como todos os outros War Boys – pelo reconhecimento de Immortan Joe. Porém, ao experimentar pela primeira vez compaixão e compreensão da Esposa Capable, passa a ajudar Furiosa em sua missão. A rápida mudança de lado pode parecer forçada para alguns, mas segue o tema do filme: Nux foi tratado como um objeto durante toda sua vida, e ao receber reconhecimento humano pela primeira vez, passa por uma experiência tão reveladora que fará de tudo para não voltar a seu estado anterior.

A trajetória de Max, por sua vez, é mais sutil. Max começa Fury Road como um homem tão distorcido por seus traumas que praticamente não se considera mais humano. Ele em seguida é capturado e transformado em uma bolsa de sangue viva para os War Boys. Durante todo o primeiro arco do filme, Max não é tratado como um humano, e sim como um objeto; por consequência, ele internaliza essa mensagem e age apenas segundo seus instintos: desespero, pânico, sobrevivência às custas de tudo. Max não consegue falar no primeiro arco, pois não há ninguém que esteja disposto a ouvi-lo.

Até que Max se encontra com Furiosa, e, ao longo do filme, recupera sua voz. Furiosa trata Max como humano, o arranca da condição de objeto/animal. Ela confia em Max antes de Max se achar confiável, e o aceita dentro de seu grupo. Esse engajamento com o outro como humanos, não objetos, possibilita o começo da recuperação de Max. O clímax de sua jornada não é um momento de ação e violência, mas sim de compaixão, quando usa seu sangue para salvar Furiosa. Paradoxalmente, Fury Road é um filme de violência que condena tal violência em favor da compaixão e conexão humana.

Não se admira que MRAs tenham odiado tanto o filme: entraram no cinema esperando duas horas de violência e explosões escapistas, e se depararam com um ensaio sobre as consequências do patriarcado e da exaltação da hiper masculinidade. O verdadeiro poder de Mad Max: Fury Road não está em o filme defender o fato de que mulheres não são objetos; mas sim em defender o fato de que ninguém é objeto, e o feminismo é vantajoso tanto para homens quanto para mulheres.

Ainda há muitas outras coisas dignas de nota em Mad Max: Fury Road. Sua cinematografia é propositalmente composta de cores hiper saturadas, indo na contra-mão dos filmes de ação e pós-apocalípticos atuais, constituídos de paletas cinzentas e descoloridas. Todas as cenas de luta foram filmadas na vida real, sem basicamente nenhum CGI; novamente indo na contra-mão dos filmes de ação atuais. Apesar de lidar com temas tão pesados, Fury Road não tem medo de abraçar o exagerado e hilário; quem mais teria coragem de inserir um Warrior Boy que fornece a trilha sonora da batalha tocando uma guitarra que solta fogo? Há também muito ainda a se falar sobre como um filme com tão pouco diálogo consegue dar conta de desenvolver não apenas seus personagens, como também toda sua cultura e mundo.

mad max fury road final

Mad Max: Fury Road é o filme que verdadeiramente tem tudo: você está interessado em duas horas de explosões e perseguições de carro? Assista sem medo. E você, interessado em construções sociais de gênero, objetificação do ser humano, e o papel da mulher na sociedade? Assista sem medo, e depois volte para escrever seu próprio ensaio.