A Queda de Daenerys Targaryen, ou: as consequências das más adaptações

Daenerys Targaryen sempre foi uma das personagens mais complexas de As Crônicas de Gelo e Fogo. Seu destino final sempre foi tema de várias análises e teorias entre os fãs dos livros, principalmente após seu arco em A Dança dos Dragões. Quando a oitava temporada da série de tv Game of Thrones, adaptação dos livros, tornou claro para onde Daenerys estava caminhando – para se tornar a vilã final da série -, muitos fãs dos livros não ficaram chocados; pelo contrário, suas teorias foram apenas confirmadas. Para muitos leitores essa foi a culminação óbvia do arco da personagem.

Porém, essa reação não foi universal; pelo contrário, para a maioria dos fãs do show, esse foi um plot twist sem sentido, criado apenas para ser chocante e nada mais. Foi uma traição de sete temporadas de desenvolvimento.

Como dois grupos de fãs podem ter reações tão diferentes sobre um mesmo final? Não estamos falando da mesma história, afinal de contas? E é aí que está o cerne da questão: não, não estamos falando da mesma história. Não estamos nem falando da mesma personagem.

A Daenerys Targaryen dos livros não é a mesma Daenerys Targaryen da série de tv.

dany5

A temporada final de Game of Thrones esteve fadada ao fracasso a partir do momento que os diretores D&D confirmaram que seguiriam o final que George RR Martin os deu. O show começou a se diferenciar de sua origem já na terceira temporada, diferenças sutis que foram crescendo e se tornando mais importantes conforme as temporadas avançavam; tentar voltar para a linha dos livros apenas nos últimos episódios nunca daria certo. Os personagens já estavam mudados, de formas que talvez possam até parecer inconsequentes em um primeiro momento, mas que foram importantes o suficiente para que, nessa última tentativa de empurrá-los de volta para a narrativa dos livros, fizesse com que os personagens perdessem qualquer verossimilhança. Eles não pareciam mais pessoas reais, tomando decisões sinceras; mas sim peças em um tabuleiro sendo empurradas para onde devem ir, sem nenhuma vontade própria.

Todos os personagens do show foram vítimas desse fenômeno, mas ninguém mais que Daenerys.

A Dany dos livros é uma personagem intrigante não só por seu carisma, simpatia, e dragões; mas também por sua complexidade, e seu grande conflito interno entre ser uma líder justa, e o lema da casa Targaryen, “fogo e sangue”. No decorrer dos livros, os Targaryen são estabelecidos como uma família de conquistadores instáveis, que por um lado trouxeram paz para Westeros – ou, é o que dizem ter feito; lembrem-se que “a história é contata pelos vencedores” e narradores não confiáveis são dois temas importantes para GRRM -, mas por outro causaram destruição por todo seu caminho:

” (…) Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram perto da loucura. Seu pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. Sempre que um novo Targaryen nasce” disse ele, “os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá”.”

O capítulo introdutório de Daenerys nos apresenta à uma menina sozinha, abusada por seu irmão e vendida como gado para uma tribo de “selvagens”. A única coisa que a mantém sã é o sonho de um dia voltar para casa – a casa do portão vermelho -, e a convicção, passada a ela por seu irmão e todos que estão a sua volta, de que Westeros pertence aos Targaryens. Reconquistar o Trono de Ferro é um direito de nascença: primeiro de Viserys, como o filho mais velho do último rei, e depois, quando Viserys morre, de Dany.

Talvez considerar o trono de um reino como direito de nascença não seja uma boa mentalidade a se ter, mas falaremos sobre isso mais para frente.

Nas páginas do primeiro livro, Dany cresce, ganha confiança em si mesma, se livra de seu irmão abusivo, ganha controle sobre os dothraki, e sim, ela perde o marido, mas ganha três dragões em troca. Estamos com todos os aparatos para um arco heroico a postos! Ou será mesmo?

“Salvou-me? Três desses cavaleiros já me estupraram antes de me salvar, menina. Vi a casa de meu Deus queimar, lá onde eu tinha curado homens e mulheres. Nas ruas eu vi pilhas de cabeças… a cabeça do padeiro que faz o meu pão, a cabeça um jovem menino que eu tinha curado de febre. Então … diga-me novamente exatamente o que você salvou? ”

Essa fala de Mirri Maz Duur, a bruxa que mata Khal Drogo e é queimada por Daenerys em um capítulo final heroico, sempre me chamou a atenção. Mirri é apresentada como uma vilã; afinal, Dany a salva e Mirri retribui a gentileza com uma tentativa de assassinato. Mas nessa hora devemos lembrar que esses são capítulos da Daenerys, ou seja, tudo é narrado do seu ponto de vista. E lembra quando eu falei que narradores não confiáveis são um dos temas importantes do autor?

Do ponto de vista de nossa narradora, Mirri Maz Duur foi salva. Mas o fato é que Daenerys é uma recém chegada na tribo do Khal Drogo. Ela é tratada relativamente bem pelos dothraki, logo toma o partido da tribo; porém ela não conhece realmente a cultura em que foi inserida, e a verdadeira relação entre a tribo de seu marido e as aldeias escravizadas por eles. Dany considera Mirri uma traidora pelo que ela fez com Khal Drogo mesmo depois de ter sido salva. Mas nas próprias palavras de Mirri Maz… Dany a salvou do que, exatamente? Os dothraki já haviam destruído sua aldeia, matado sua família, e a estuprado. Se essa história fosse contada do seu ponto de vista, não diríamos que sua vingança é justificada?

O conflito entre Daenerys e Mirri Maz Duur é uma cena pequena e sutil dentro da jornada heroica de Dany nos primeiros livros, e ela continua sua jornada sendo a conquistadora justa que prometeu. Matou homem escravistas, libertou escravos, tentou controlar seus dragões da melhor maneira que pode….. até que decide parar em Meereen e tentar  fazer o que não tinha feito antes: não só conquistar, mas também governar o que conquistou. E é a partir desse ponto que as rachaduras em sua jornada heroica começam a se tornar mais óbvias.

dany2

O problema é que para conquistar você precisa de força, poder, e um certo teor de crueldade, para não exitar em matar quem precisa ser morto. Mas as qualidades necessárias para uma boa governante não são as mesmas de uma boa conquistadora. Para governar um povo, você precisa entendê-lo, escutá-lo, ter vontade de negociar um meio termo entre seus objetivos e as necessidades de seu povo. Porém, não é isso que Daenerys faz: durante seus capítulos em A Dança dos Dragões, ela se recusa a acatar as sugestões de seus conselheiros. É claro, as sugestões nem sempre eram boas; mas eram sugestões feitas por pessoas que viveram sua vida inteira naquele povo, que tem conhecimento sobre essa cultura, como ela funciona, e o que o povo quer. Daenerys poderia ter encontrado um meio termo. Mas ao invés de buscar entender o povo que governa, ela se mantém inflexível no que acredita ser o certo, e as consequências são óbvias: o final do livro nos mostra Dany incapacitada de governar Meereen, fugindo em seu dragão.

Nesse ponto, a jornada de Daenerys chega a uma encruzilhada. Ela tem duas opções: decidir se esforçar mais para se tornar uma boa governante, ouvir seus conselheiros, tentar entender a cultura do povo que governa; ou abraçar de vez seu lado conquistador. E infelizmente, Dany faz sua escolha:

“Você é o sangue do dragão. Dragões não plantam árvores. Lembre-se disso. Lembre-se de quem você é, o que você foi feita para ser. Lembre-se de suas palavras. Fogo e sangue.”

Daenerys escolhe o poder.

Em um primeiro momento, um personagem escolher ser uma conquistadora implacável pode soar incrível para o leitor. Afinal, isso é uma história de fantasia com dragões, certo? Todo mundo quer ver dragões destruindo cidades. Essa é apenas uma fantasia escapista! Deixe-nos nos divertir com heróis destruindo tudo!

Mas o fato é que As Crônicas de Gelo e Fogo não é uma fantasia escapista. George RR Martin começou a escrever essa série justamente porque ele se preocupa com as verdadeiras consequências de um mundo com dragões que podem destruir cidades inteiras. Em 2011, na época do lançamento de A Dança dos Dragões, é isso que o autor teve a dizer sobre os filhos de Daenerys:

“Dragons are the nuclear deterrent, and only Daenerys Targaryen has them, which in some ways makes her the most powerful person in the world. But is that sufficient? These are the kind of issues I’m trying to explore. The United States right now has the ability to destroy the world with our nuclear arsenal, but that doesn’t mean we can achieve specific geopolitical goals. Power is more subtle than that. You can have the power to destroy, but it doesn’t give you the power to reform, or improve, or build.”

Você pode ter o poder para destruir, mas isso não te dá o poder para reformar, melhorar, ou construir. Dragões não plantam árvores. Fogo e sangue.

Levando em conta o fato de que GRRM compara os dragões com armas nucleares, e o poder que esses animais dão a seus donos com as guerras dos Estados Unidos – e levando em conta o fato de que GRRM é notadamente um pacifista, que se posiciona contra o imperialismo americano…. as coisas não parecem muito boas para Daenerys nesse momento.

Suas conquistas até esse ponto foram na base do poder, na base de seus dragões serem armas de guerra praticamente invencíveis. E até esse momento, Dany os usou nas pessoas que os mereciam, como por exemplo escravocratas. Mas essas constantes vitórias apenas confirmaram o que Dany aprendeu com seu irmão e com os últimos apoiadores dos Targaryens: esse é seu direito de nascença. Você nasceu para retomar o Trono de Ferro. Você é a Mãe dos Dragões, Mhysa, A Quebradora de Correntes. Meereen não é seu reino, Westeros é. É eles que te esperam.

Mas o fato é que… Westeros não espera Daenerys. Na verdade os westerosi não esperam nenhum Targaryen, e querem é ficar longe de toda essa bagunça com os dragões, porque eles já passaram por isso uma vez e não foi legal. Os reinos de Westeros querem sua independência de volta. Não há nenhum escravocrata para ser morto, ou pessoas para serem libertas de suas correntes, a menos que olhemos para o reino unificado de Westeros em si como uma grande corrente. Daenerys está voltando para Westeros para retomar o Trono e reunificar os reinos, enquanto os reinos estão lutando pelo contrário.

É óbvio, portanto, que quando Daenerys chegar a Westeros, ela não encontrará pessoas a clamando como Mhysa, mas sim encontrará uma oposição vinda do povo talvez pela primeira vez em sua jornada. E o que uma pessoa com o poder de bombas nucleares, que cresceu acreditando que o trono é seu por direito, e que recentemente decidiu abraçar seu legado de conquistadora, ao invés de aprender a pensar em outras alternativas, irá fazer quando encontrar essa oposição? Quando em todas as outras vezes até agora, sua oposição se mostrou ser pessoas terríveis, que confirmaram sua visão de que ela é a salvadora do reino?

Não é a toa que basicamente todas as teorias sobre o retorno de Daenerys a Westeros termina com Kings Landing totalmente destruída.

dany3

Olhando para a jornada de Daenerys desse jeito, ela parece uma construção de personagem incrível. Uma grande subversão do arquétipo de herói conquistador messiânico, uma história de origem que não é de herói, mas sim de vilão, mas que ainda assim é apresentada de forma complexa e multidimensional. Se Daenerys não passar por um arco de redenção e realmente precisar ser morta no final, os leitores vão entender todos os passos que a levaram a essa morte, porque nós estávamos com Dany durante todo o caminho: nós vimos seu conflito interno, sua luta para ser uma boa líder, seu erro em Meereen, o momento em que sucumbe e abraça seu lado de fogo e sangue.

Mas não é isso que aconteceu com a Daenerys Targaryen do show da HBO.

A Dany do show não passou por nenhum conflito interno, por nenhum momento de dúvida. Suas decisões nunca foram postas em cheque pela narrativa antes do penúltimo episódio do show. D&D, ao invés de mostrarem uma personagem multifacetada, abraçaram a primeira impressão de Daenerys como uma heroína messiânica e nunca mais mudaram sua abordagem. Se nós não vimos as sementes da “Rainha Louca” serem plantadas nas temporadas anteriores, como que podemos aceitar essa súbita mudança de direção da personagem?

É claro, D&D tentaram justificar suas decisões criativas, dizendo que na verdade as cenas em que Daenerys mata seu irmão abusivo e donos de escravos são o prenúncio de sua queda. Mas além de esse não ser o problema da Dany – o problema não foi matar escravocratas, mas sim o que ela decide fazer depois disso -, o fato é que o show nunca apresentou essas cenas como problemáticas. Pelo contrário, toda a cinematografia é feita para aumentar o teor vitorioso da personagem, e terminar de mitificá-la como a grande Heroína do Povo.

O que, é claro, leva a narrativa a algumas conclusões um tanto quanto problemáticas. Ao apresentar a jornada de Essos sem nenhum questionamento, uma narrativa que era anti-imperialista – conquistadora com poderes nucleares chega em uma terra distante e acha que sabe mais sobre governar aquele reino que o próprio povo – se torna não só imperialista, como também racista e misógina.

dany

Quando D&D mudaram os escravos de Essos, que são explicitamente descritos nos livros como sendo pessoas de várias raças e etnias, para escravos exclusivamente negros, eles apenas exacerbaram o problema de apresentar Dany como uma grande salvadora sem nenhum questionamento. Não é a toa que quando a cena da Mhysa foi ao ar, os escritores receberam várias críticas sobre estarem escrevendo uma narrativa de “White Savior”.

Além disso, o show cortou grande parte da narrativa de Dorne, que é um reino populado por pessoas não brancas em Westeros. Assim, D&D fizeram as únicas pessoas não brancas do show serem os escravos de Dany, que invadem Westeros e são hostilizados por seus moradores. O povo de Winterfell não olhar com bons olhos o exército Targaryen invadindo seu reino faz sentido, mas quando esse exército é a única representação negra do show – novamente, porque os escritores escolheram excluir Dorne -, as implicações não são das melhores.

Outra implicação problemática que D&D criaram foi toda a causa da “loucura” de Daenerys. Bem desenvolvida e explicada, como está sendo até agora nos livros, esse é um arco de queda de uma personagem com mensagens explicitamente anti-imperialistas e pacifistas. Porém, sem nenhuma das explicações nas temporadas anteriores, o que somos apresentados no show é… uma mulher competente e ambiciosa forçada a “enlouquecer” no momento que chega perto de sentar no trono, para que um homem aleatório, que não conquistou nem metade de seu sucesso, fique em seu lugar.

Assim como D&D escolhem mostrar as únicas pessoas não brancas do show serem ex-escravos parte de um exército selvagem que é derrotado e vai embora de Westeros, eles escolheram mostrar as únicas mulheres no poder sendo loucas que precisam ser mortas. É claro, Arya e Sansa poderiam ser usadas para escapar desse clichê misógino, mas os diretores escolheram não focar nelas; Arya não tem um arco ligado à política e logo nunca entraria na briga pelo trono, e Sansa foi largamente ignorada nesses últimos episódios. As únicas mulheres com foco são as rainhas loucas e os homens que precisam nobremente pará-las.

dany4

Meu maior medo com As Crônicas de Gelo e Fogo era de que Dany teria sua personagem destruída para que Jon e Tyrion pudessem ser endeusados como os salvadores de Westeros. Para meu alívio, Jon não termina como rei, e tanto ele quanto Tyrion são ignorados durante grande parte da temporada. Os telespectadores terminaram o show finalmente sentido um pouco do desgosto que eu sinto por esses personagens. Mas isso não foi algo premeditado de D&D: afinal, dentro do universo do show, os personagens ainda amam ambos. Jon ainda é amado por seus súditos, e seu exílio é visto como algo trágico, uma grande perda para Winterfell. Tyrion é aclamado pelos personagens como um grande estrategista, apesar de não ter feito nada a temporada inteira. Se esses personagens não receberam a aclamação que achei que receberiam, não é por algum propósito da parte de D&D, mas sim por pura incompetência.

Eu tenho criticado as escolhas criativas de D&D desde a terceira temporada. Eu sempre falei que ao apagarem as sutilezas e incongruências de personagens como Daenerys, Jaime, e Tyrion, isso traria consequências para a narrativa que GRRM pretendia apresentar. Enquanto George RR Martin está escrevendo personagens cinzas, onde até os heróis mais nobres tem seus defeitos, D&D optaram por uma abordagem plana, onde seus personagens favoritos não apresentam nenhum momento que não seja positivo ou heroico. O que me surpreende é a decisão de, mesmo assim, continuar com o plano de terminar a série com o final pensado para os livros. Não seria melhor criar um final totalmente novo para esses personagens totalmente novos? Enquanto um final com um casamento entre Jon e Dany estaria incrivelmente deslocado nos livros, ele seria congruente com o que o show construiu até esse momento. Por que decidir destruir a fanbase que cultivaram durante todas essas temporadas?

Meu palpite é que D&D realmente acharam que seus “plot twists” seriam um sucesso. Após o sucesso da morte de Ned na primeira temporada, e o Casamento Vermelho na terceira, D&D parecem ter chegado a conclusão de que sua audiência quer cenas chocantes e surpresas sangrentas. Mas o que eles não perceberam é que os choques dessas duas cenas apenas tiveram sucesso porque a história foi construída para chegar nesses pontos. Ned, antes de ser morto, é construído como um personagem falível. A mesma coisa com Robb. Seus erros foram mostrados pela narrativa, e aí sim culminaram em um grande evento. O mesmo aconteceria com a queda de Dany, eu tenho certeza: se ela tivesse sido construída com mais cuidado, no decorrer das temporadas anteriores, seu episódio seria tão marcante quanto os anteriores. Mas D&D optaram pelo contrário: focaram no heroismo de Dany, para que sua queda fosse ainda mais chocante. E assim, acidentalmente criaram uma narrativa totalmente incongruente com si mesma.

O que me apaziga é a certeza de que o mesmo não acontecerá com os livros. Sim, GRRM está demorando séculos para lançar a continuação, blá blá blá, insira piada sobre os livros nunca serem terminados aqui; mas essa demora toda é porque o próprio autor admitiu que o plot do livro se tornou mais complicado do que o esperado, então ele está tentando solucionar todos os problemas com a maior atenção e calma possível. E sinceramente, é isso que me dá certeza de que se recebermos os livros em mãos, as jornadas de todos os personagens farão sentido. O criador da história está, para o choque de todos, pensando nela.

Portanto, eu sei que muitas pessoas se desanimaram ao já saber o final da saga, e estão cogitando nem ler os livros. Mas eu, como alguém que nunca me importei com spoilers, na verdade estou mais animada com As Crônicas de Gelo e Fogo do que já estive em anos. Ok, já sabemos o final dos personagens principais (ou pelo menos, sua maioria; eu ainda tenho esperanças sobre o final do Tyrion ser diferente do que vimos), mas isso só prova que a jornada para chegar até esse ponto será extremamente complexa e cheia de reviravoltas. Eu pessoalmente mal posso esperar.

BAILEYS Women’s Prize 2017

baileys 3

O vencedor do BAILEYS 2017 foi anunciado hoje, 07 de junho, e portanto resolvi fazer um post comentando sobre essa edição do prêmio inglês para livros escritos por mulheres. Eu descobri o BAILEYS Women’s Prize ano passado, e gostei bastante da lista de nomeados daquele ano; mas a lista de 2017 conseguiu se superar, porque dos dezesseis livros da longlist, a grande maioria me interessou muito! Vários desses livros eu já tinha ouvido falar sobre, graças a booktubers internacionais, mas vários livros foram totalmente desconhecidos; o mix perfeito entre antecipação e surpresa.

Da longlist, The Essex Serpent, The Lonely Hearts Hotel, The Lesser Bohemians, e The Gustav Sonata foram os livros que mais me chamaram a atenção. The Lesser Bohemians é o segundo livro da autora de A Girl Is A Half-formed Thing, livro que já ganhou o BAILEYS (e diversos outros prêmios), então há uma antecipação para ver se o novo livro da autora é tão bom quanto o anterior. The Essex Serpent foi o livro favorito de 2016 de vários booktubers gringos que acompanho, então ele já estava no meu radar a algum tempo. E os últimos dois livros são livros “meu tipo”: The Lonely Hearts Hotel é um livro sobre circo com protagonistas crianças; e The Gustav Sonata é um livro histórico sobre a amizade de dois garotos durante a Segunda Guerra. Crianças, amizade, e circo? É claro que entraram na minha wishlist na mesma hora.

Mas o mais interessante dessa lista foi sua shortlist, que escolheu seis livros igualmente interessantes. Essa é a primeira vez que tenho vontade de ler a shortlist inteira de um prêmio; cada livro me chama a atenção de um modo diferente.

baileys 2

A shortlist consiste dos seguintes livros:

First Love, de Gwendoline Riley: O livro mais curto da lista, e o menos interessante a primeira vista, First Love conta a história de Neve, uma escritora casada com um homem mais velho chamado Edwyn. Eu não estava dando muito para esse livro, mas resenhas logo mudaram minha opinião: esse não é um livro de romance, mas sim uma história sobre abuso narrada por uma narradora extremamente não confiável. Parece que cada leitor sai com uma interpretação diferente do livro, e essas sempre são as leituras mais divertidas.

The Sport of Kings, de C.E. Morgan: Após o livro mais curto, temos o livro mais longo da shortlist. The Sport of Kings pode parecer uma história sobre corrida de cavalos, mas na verdade é uma saga épica sobre duas famílias: uma dinastia agrícola do sul dos Estados Unidos, e a outra, os descendentes de seus escravos. The Sport of Kings é uma história sobre racismo e as falácias da “supremacia branca”, com uma narrativa comparada à Donna Tartt, autora de A História Secreta, um dos meus livros favoritos. Não preciso nem dizer que tem meu interesse.

Do Not Say We Have Nothing, de Madeleine Thien: Finalista do Man Booker Prize de 2016 e agora finalista do BAILEYS de 2017, Do Not Say We Have Nothing é um livro extremamente condecorado, vencedor de diversos prêmios desde seu lançamento. E é possível entender o porque: é um livro histórico que viaja por três gerações de famílias chinesas; a geração que participu da Revolução Cultural, a seguinte que participou do Protesto de Tiananmen, e a terceira, que encontrou refugio em Vancouver, Canadá. Com foco em duas meninas, a narrativa irá entrelaçar a história das duas famílias junto com a vida atual das garotas, e irá mostrar como o passado continua a impactar o presente.

The Dark Circle, de Linda Grant: Após a Segunda Guerra Mundial, dois irmãos são diagnosticados com tuberculose, e são mandados para um sanatório. Essa sinopse logo me lembrou a história de vida de vários escritos brasileiros, haha. Mas The Dark Circle parece ser sobre a questionável medicina daquela época, e sobre o NHS: National Health Service – basicamente, o SUS da Inglaterra. É um livro que usa a história para discutir assuntos atuais, e que já foi elogiado diversas vezes por sua escrita poética, ou seja: tenho interesse!

Stay With Me, de Ayobami Adebayo: Stay With Me conta a história de Yedije e seu marido, um casal que deseja desesperadamente ter um filho, mas não conseguem conceber. E descontentes com isso, a família do marido anuncia que o dará uma segunda esposa, para que ela “consiga fazer o trabalho que a primeira não consegue”. Descrito como um “thriller sobre casamento”, Stay With Me foi o livro mais elogiado dessa shortlist; é uma história rápida e cheia de reviravoltas, mas que ao mesmo tempo trata de assuntos delicados com a devida sensibilidade, ambientado em uma Nigéria conturbada politicamente. Esse provavelmente será minha primeira leitura da lista, porque estou super curiosa para entender o que é um “thriller sobre casamento”.

The Power, de Naomi Alderman: Em um certo dia, garotas adolescentes subitamente ganham o poder de matar pessoas com apenas um toque; e assim, toda a nossa sociedade entrará em colapso. The Power foi o único livro da lista que eu já li; o li no final do ano passado, e inclusive escrevi uma resenha detalhada sobre a história no goodreads (resenha em inglês, pois foi feita para o netgalley). The Power é uma história que conversa sobre feminismo, fantasias de vingança, construções sociais, sobre como revoluções são feitas, o que acontece depois que a revolução atinge sucesso…. e como o poder sempre corrompe.

O vencedor do BAILEYS Women’s Prize 2017 foi justamente The Power, meu único livro lido da lista, e honestamente, eu não estava esperando por isso! Depois de todos os elogios que Do Not Say We Have Nothing e Stay With Me receberam, poderia jurar que um deles seria o vencedor. Mas ao mesmo tempo, também entendo porque The Power recebeu o título: é um livro que discute feminismo, construção de gênero, e como nossa sociedade funciona atualmente, todos tópicos não só importantes mas também relevantes para o clima político atual. Basicamente, essa foi uma shortlist extremamente forte, que teria justificativas de vencedor para cada um dos livros.

E falando em BAILEYS, lembra que ano passado comentei sobre um dos indicados, Ruby? Então, esse livro foi lançado aqui no Brasil recentemente. Fiz até um vídeo discutindo sobre a história. E o vencedor do Man Booker do ano passado, A Brief History of Seven Killings, será lançado aqui em julho. Prova de que manter um olho nesses prêmios sempre vale a pena, mesmo que você não consiga ler em inglês. 😉

Resenha: Ruby, de Cynthia Bond

Um romance inesquecível sobre a força de uma mulher para sobreviver à violência

Uma narrativa de paixão e coragem, Ruby transporta o leitor até meados do século XX, por ruas poeirentas de uma cidadezinha no sul dos Estados Unidos, enquanto aborda temas atemporais que ultrapassam fronteiras geográficas.
A jovem e bela Ruby Bell passou por sofrimentos inimagináveis durante a infância e a adolescência, e, assim que surge uma oportunidade, decide fugir de sua sufocante cidade natal no Texas para a vibrante Nova York dos anos 1950. No entanto, não consegue escapar dos fantasmas do passado.
Mais de uma década depois, quando um telegrama urgente a faz voltar para casa, ela é forçada a reviver fatos perturbadores e a reencontrar os personagens que definiram os primeiros anos de sua vida, esforçando-se para manter a sanidade em meio a lembranças sombrias.
Com uma prosa refinada, Cynthia Bond afirma seu lugar entre as vozes mais impactantes da ficção literária contemporânea e constrói uma história transformadora — ao mesmo tempo um retrato cruel do que o ser humano é capaz e uma demonstração da força transcendente do amor. Uma obra marcante sobre a luta feminina, finalista do Baileys Women’s Prize.

Ruby é um dos livros que coloquei na minha lista de 15 livros para 2017 – e imaginem minha felicidade quando algum tempo depois a Intrínseca anunciou que iria lançar esse livro no Brasil! Aproveitei e engatei a leitura no mês de seu lançamento – abril – e, leitura concluída, vim aqui dizer minhas impressões.

O livro atingiu a todas as minhas expectativas? Em certas partes sim, mas em outras partes… não posso negar que deixou um pouquinho a desejar.

Ruby é uma história extremamente bem escrita sobre todos os traumas e horrores que uma mulher negra vivendo na época da segregação dos Estados Unidos viveu. Como a própria sinopse diz, é ao mesmo tempo um retrato cruel do ser humano (extremamente cruel – aconselho cuidado a qualquer pessoa que tenha gatilho relacionado a estupro e cenas de abuso explícitas), e uma ode à força feminina. Esse é um livro que toca em muitos assuntos – racismo, feminismo, religião, sexualidade – e com diversas linhas narrativas; até magia entra no meio, porque parte da narrativa lida com o espírito demoníaco que está assombrando Ruby, ou seja, esse não é apenas um livro histórico sobre problemas sociais, mas também tem seu toque de fantástico.

A própria personagem da Ruby é extremamente bem desenvolvida. Cynthia Bond trabalhou durante muito tempo em um centro de apoio a adolescentes lgbt, e vários dos jovens com quem trabalhou eram vítimas de abuso; a autora afirma que as várias histórias que ouviu desses adolescentes serviram como inspiração para as cenas de abuso do livro. Apesar de ser um tema terrível, portanto, ele é extremamente bem embasado, e tratado de forma muito realista.

Outros pontos da história, porém, não foram tão bem desenvolvidos, e muitas vezes acabaram indo de encontro à mensagem que Ruby quer passar; a história quer passar certa mensagem com seus temas, mas as justificativas de certos personagens passam uma mensagem totalmente diferente. E, agora uma reclamação totalmente pessoal, as personagens pelas quais me interessei foram justamente as personagens secundárias, que receberam muito pouco desenvolvimento. Eu gostaria que a história focasse mais na Maggie, por exemplo, do que no Ephram – o outro personagem principal do livro, pelo qual eu não consegui me interessar por mais que eu tentasse.

Ruby é um livro recheado de temas e mensagens, que lida com assuntos polêmicos de maneira polêmica. É um livro que terá uma variedade de interpretações diferentes, dependendo da bagagem de cada leitor. E ás vezes isso é mais importante do que ter gostado ou não do livro: ele dar ao leitor algo a ser pensado. E Ruby fez justamente isso, por isso ainda recomendo a leitura, mesmo que não tenha sido um livro que tenha me conquistado.